sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Sinais

Foi por um triz que não fui atriz

O teatro foi o primeiro doce, o primeiro bom bocado

O primeiro gozo que eu tive

O primeiro gosto na boca, na alma


Foi o blend do camarim

A primeira farejada

O chiado da plateia fervendo

O cochicho de bicho de coxia


Amatriz eu inventei de ser

No teatro eu me derretia

Feito batom no calor do holofote

Era ouvir o gemido das almas do teatro

E eu me desmanchava na poltrona


Os pés empoleirados nas cadeiras

Eu, arrepiada de susto e de frio 

Procurava qualquer fio de luz no breu

Encolhida de alegria e espanto


A trilha não conhecia

Mas cantava de cor por dias

As vozes do teatro me seguiam até em casa

Era puro assombramento aquilo


Feito gente do passado

Feito coisa viva na memória do que eu era

O teatro até hoje me ronda de dentro pra fora

Feito um fantasma de mim mesma



(09.10.2020)



segunda-feira, 5 de outubro de 2020

AI, PAI, AI

 Ai, pai, ai

A gente procurando formiga no Parque Lage. Memória de foto.

A gente no sítio

A gente na rede, na piscina, no carro

A casa sem luz elétrica, o frio, os lampiões, o mingau quente

A gente cantando na estrada, no dia 21 de abril, dois meses depois do carnaval, se você pensa que cachaça é água, cachaça não é água não, cachaça vem do alambique e água

Água nova, dona Florinda, Eliane, Joseli, dona Maria, Zé Lima

A casa da Gávea, Arca de Noé, a casa da Urca, Elis 

Minha irmãzinha, eu pequena-maior um pouco que ela, me achando adulta

A casa da Lagoa

Não lembro nitidamente

Mas choro. E não sei por quê

Não sei por que choro.


Ai, pai, ai

Lu, Kika, Antó

obrigada.


Quero escrever sobre a gente. Acho que tem muito, aqui dentro, muita história nossa pra ser contada. Você não é só isso. Você é a escrita, o livro, a música, o carnaval, o cheiro de roça que eu amo. Você é o silêncio que eu gosto ouvir. Você é o amor por morros verdes. Você é o amor por mar, pelo nordeste, o ouro de Petrópolis a Minas. A mesa do Rio, Minas e Alagoas. A comida no fogão a lenha. Você é o mundo mais bonito, que se emociona, que faz livro pra filho, que sorri com a cachaça nos olhos, amor e fúria. Macunaíma. Coração Tambor.


quinta-feira, 13 de abril de 2017

E COM QUANTOS PAUS SE FAZ UMA CANOA?


(Texto do primeiro poema que eu publiquei em livro, em 2011)

Com quantos meninos se faz uma roda?
Com quantos caminhos se constrói estrada?
Com quantos beijinhos virou namorada?
Com quantos sorrisos se ganha a parada?

Com quantos carinhos se diz funcionária?
Com quanto capricho se faz melindrosa?
Com quantos aplausos se é premiada?
Com quantos domingos se está descansada?

Com quantos momentos se constrói a vida?
Com quantas vitórias se vence uma guerra?
Com quantos lamentos se sofre calada?
Com quantas feridas se faz machucada?

Com quantas camadas se adoça uma torta?
Com quantos suspiros se sonha acordada?
Com quantos limões vira limonada?
Com quantos alqueiras se planta uma horta?

Com quantos assuntos se monta uma prosa?
Com quantos senões se arruma uma briga?
Com quantos amigos se é adorada?
Com quantos dinheiros se compra uma vida?

Com quantos adeuses se faz despedida²
Com quantos tropeços se acerta o passo?
Com quantos temperos se tem cozinheiro?
Com quantos pedidos se realiza o desejo?

Com quantas estrelas se conta uma noite?
Com quantas auroras nasceu mais um dia?
Com quanta demora se aparam as arestas?
Com quantas fogueiras se esquenta uma festa?

Com quantos acordes se canta a toada?
Com quantos pliés nasce a bailarina?
Com quanta beleza reluz uma rima?
Com quantas estrofes se escreve poesia?

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Tudo o que escorre e não seca

Escrevo
Enquanto o sol aquece o chão da minha sala
Escrevo
Enquanto o vento dança atrás da cortina
Escrevo
Enquanto penso em partir ou ser partida

Escrevo dia sim e noite também
Escrevo para libertar os dogmas
Abreviar ressentimentos, assegurar sonhos
Por tudo o que escorre e não seca

Minha vida se resume a criar vontades irrealizáveis
Escrever de manhã como se a tarde não chegasse
Ter um vulcão a lenha
Plantar vontades no quintal
Usar minhas asas sem causar inveja nos outros pássaros
Viajar e me demorar a voltar ao ponto de mudar a vista
Ter alegrias sem precisar de moedas estrangeiras
Amar com amor próprio na despedida
Ver a minha avó
Dirigir até a Lua com meus sobrinhos na garupa da moto-foguete

Escrever é coisa de quem não tem nada de útil a fazer?
Coisa que se faça por ser?
Escrever é o único verbo que me responde para que serve minha vida
Mesmo que eu escreva todos os dias sobre coisa alguma que lhes interesse

Não tenho que responder nada enquanto escrevo e o assoalho ferve, o vento esbanja assobio, a cortina mexe a saia, os cabelos crescem.
Enquanto escrevo o tempo passa e meus desejos escorrem do pensamento e sossegam.
Penso na minha avó e em não voltar da Serra, em dar asas aos meus sobrinhos, em salgar as vontades, em dirigir minhas viagens.

E amar a Lua sem pressa.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Música e escrita

Ainda falando sobre a relação entre a música e a literatura, na minha autoconstrução como escritora, agora que estou fazendo Cantoria em Grupo, com a Alice Passos, estou cantando bastante e tenho pesquisado músicas. Com isso percebo que a escrita está fluindo mais. Não é incrível. Preciso desse espaço. Preciso para poder escrever. A vida, confesso que me atrapalha. Tenho prazer em acordar, ouvir música e escrever. Preciso desobstruir os canais da criação. É nisso que tenho prazer, que quero trabalhar e viver.

As músicas que ouço e o compositores estão relacionados a fases da minha vida. Bituca, por exemplo, conversa com a minha infância. Eu ouvia os discos da minha mãe. Me sentava no chão da sala, perto da vitrola e ficava horas ouvindo as mesmas músicas, decorando e t(r)ocando os discos. Ou então dançava e cantava, ensaiava. Sozinha ou com alguma amiga que estava lá em casa. Eu gostava muito de ouvir Milton! Aos 8 ou 9 anos, eu gostava de ouvir essa música aqui. Mas o campeão lá de casa era esse disco aqui, Ele começa com Peixinhos do Mar. Dancei muito uma coreografia criada com minha amiga Sabrina. Esse disco ajudou a me formar.





A primeira música é Fazenda

Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam coisas dessa vida
Eu era criança, hoje é você, e no amanhã, nós

Água de beber
Bica no quintal, sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
Tinha sabiá, tinha laranjeira, tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida, tios na varanda, jipe na estrada
E o coração lá

esse aqui? Coidiloco.



Cronologicamente, ele é anterior ao outro (de 1975), mas na minha ordem de descoberta na vida, o outro veio antes. Esse tem cada arranjo e cada verso que rearranja tudo dentro da gente... 

Vem escrever!

No domingo, uma amiga que estuda aromaterapia contou. De todos os sentidos, mesmo sendo mais lento que os outros, o olfato é o que faz a conexão mais rápida com o cérebro, através do Sistema Límbico, onde nascem e ficam armazenadas as emoções.  Ela disse que a memória de um cheiro nunca mais desaparece. Papo de que guardamos mais de 40 mil cheiros de cor, de coração, de memória. Ou seja, a memória do coração está no olfato. Gostamos do que gostamos de cheirar. Nos afeiçoamos e nos atraímos pelo cheiro. Pra mim faz sentido.

E não é só aquele perfume que sabemos o nome, não. No que o olfato capta, a memória guarda, sem nos darmos conta. Fica lá. Às vezes nos lembramos de pessoas sem saber que essa lembrança nos chegou através da nossa perfumaria interna. Não estão catalogados, mas estão lá. 

Eu adoro esse papo de memória e da relação que ela têm com nossos sentidos e nossas emoções profundas e ocultas. Eu sempre fiz diário, que é um baú de palavras sobre sentimentos, sensações e emoções. A minha literatura é assumidamente autobiográfica, embora trabalhada em técnica, cortes e acréscimos de faz-de-conta. Faz parte.

Hoje estou pesquisando para montar os programas dos encontros do Laboratório de Escrita do Liberte o Escritor, que vou começar a fazer aqui em casa, para incentivar pessoas que querem escrever literatura (eu, inclusive) e gostariam de ter um espaço (físico e de tempo) para laborar.  De quebra, quem vier pro grupo vai ter um espaço de escuta de seus textos, e de troca para exercitar sua criação, além de alguns elementos e técnicas e otras cositas más.




As oficinas-musicais do Liberte o Escritor foram criadas a partir da minha experiência particular como escritora. Eu sempre juntei as duas coisas. Ouvir música, cantar, improvisar-compor e escrever. Ou seja, minhas referências na literatura são musicais também. Muita coisa que eu escrevo, começo cantando de improviso, brincando de fazer música e depois vai virando poema, história.

A melodia não pega, por exemplo, porque não tenho instrumento para tirar a harmonia nem conhecimento de música o suficiente. Mas quando escrevi o projeto, eu não sabia como seriam as oficinas. Criei uma oficina que era quebrada por números musicais. Ou pode ser um show com interferências em que eu ia falando de elementos utilizados na escrita pelos escritores e compositores. De possíveis fontes de inspiração à  figuras de linguagem e licença poética. Da escrita autobiográfica à crítica social.  Achei que a música acessaria no jovem a literatura, pela linguagem, pelas ideias, pela força das palavas, como faz comigo. Com o jovem, deu certo. Agora, com os adultos, vou estimular a criação atiçando a memória e a bagagem através dos sentidos, mas também trabalhando alguns recursos e técnicas que aprendi em uma década como aluna de oficinas.


segunda-feira, 3 de abril de 2017

Estela do rio


               



Estela sonha velejar
Conquistar o mundo do mar
Cavalgar cavalos-marinhos
Virar vento de moinhos

Estela feita maré
Brava, morna
Concha, espuma
De caçar jacarés, carneirinhos


Estela estrela do rio
Ganhou brinco de presente
De seu mar particular
Feita com a Pedra-do-Sol

Estela mergulhou fundo
Perdeu o rumo do sonho
A concha cochichou nela
Que o mar é de todo mundo